sábado, 3 de setembro de 2011

Canto do Cisne ou, simplesmente, O Conto do Jornalista.

Um dia minha cadela come uma quentinha jogada no lixo, e precisa tirar radiografias que custam mil pratas. A área atrás do meu prédio é cheia de lixo e vidro quebrado. No lugar onde as pessoas estacionam os carros, há poças de anticongelante esperando para envenenar qualquer cachorro ou gato.

Mesmo careca, o veterinário lembra um grande amigo meu de infância. Ele é parecido com um garoto que foi criado junto comigo. Tem um sorriso que eu via todo dia quando criança. Uma covinha no queixo e sardas no nariz. Eu conheço todas essas marcas. Sei até que ele usava aquela falha entre os dois dentes da frente para assobiar.

Mas agora ele está junto a uma mesa de aço prateado numa sala fria com azulejos brancos, aplicando uma injeção na minha cadela. Segurando a pele do pescoço do bicho, o veterinário diz algo sobre dilofilária.

Quando encontrei o seu nome no catálogo, eu estava cego de tanto chorar, com medo que minha cadela morresse. Mas ali estava aquele nome: Kenneth Wilcox, doutor em medicina veterinária. Um nome que eu adorei, de alguma forma. Por alguma razão. O meu salvador.

Ele repuxa as orelhas da cadela, examina cada uma, e diz algo sobre a Doença de Carré. No bolso do peito do seu jaleco branco há uma inscrição bordada: “Dr. Ken”.

Até no som da sua voz ecoa uma lembrança muito antiga. Já ouvi essa voz cantando “Parabéns para Você”. Ou então gritando “Fora” numa partida de beisebol.

É ele mesmo, um velho amigo meu, mas alto demais, com as pálpebras flácidas e escurecidas. Tem uma papada embaixo do queixo. Seus dentes estão um pouco amarelados, e os olhos azuis não parecem tão brilhantes quanto deveriam.
– Ela parece estar bem – ele diz.
– Quem? – pergunto.
– Sua cadela – ele responde.
Ainda olhando para ele, vendo a careca e os olhos azuis, eu indago: – Onde você estudou?

Ele diz o nome de uma faculdade da Califórnia. Um lugar que eu não conheço.

Ele era pequeno quando eu era pequeno, e de alguma forma nós crescemos juntos. Ele tinha um cachorro chamado Skip, e passava o verão inteiro descalço, sempre pescando ou construindo uma casa nas árvores. Olhando para ele, consigo visualizar um boneco de neve perfeito, construído durante uma tarde fria, enquanto sua avó observa da janela da cozinha. – Danny? – eu digo.

E ele ri.

Na mesma semana, tento vender uma reportagem sobre ele para um editor. A matéria dirá como eu reencontrei o pequeno Kenny Wilcox, o ator infantil que fazia o papel de Danny no seriado Danny-Next-Door há um zilhão de anos. Danny, o garotinho com que todos nós fomos criados, virou veterinário. Mora num condomínio suburbano, e cuida sozinho do gramado. É ele mesmo, careca e quarentão, um pouco gordo e ignorado.

Esse astro que se apagou está feliz, e mora numa casa de dois quartos. Quando ri, surgem pés-de-galinhas em torno dos seus olhos. Ele toma pírulas para controlar o colesterol. E é o primeiro a admitir que, depois de passar tantos anos como centro das atenções, até se sente um pouco solitário. Mas é feliz.

O importante é que o doutor Ken aceitou ser entrevistado por mim. Um breve perfil para a revista de domingo do jornal.

O editor com quem converso gira a ponta da esferográfica dentro do ouvido, retirando cera. Parece morto de tédio.

Ele diz que os leitores não querem matérias sobre alguém que nasceu bonito e talentoso, ganhou uma fortuna para aparecer na televisão, e depois vive feliz para sempre.

Não, as pessoas não querem finais felizes.

Elas querem saber de Rusty Hamer, o garoto de Make Room for Daddy, que se matou com um tiro. Ou de Trent Lehman,o menino bonito de Nanny and the Professor, que se enforcou numa cerca do parque. Daquela Anissa Jones, que fazia papel de Buffy em Family Affair, agarrada a uma boneca chamada Sra. Beasley, e que engoliu a maior dose de barbitúricos na história do município de Los Angeles.

É isso que as pessoas querem. Pelo mesmo motivo, vamos aos autódromos ver os carros baterem. Como dizem os alemães: “Die reinste Freude ist die Schadenfreude*.” A dor das pessoas que invejamos causa em nós a alegria mais pura. Essa é a mais genuína forma de alegria. A que sentimos quando uma limusine pega a contramão numa rua de mão única.

Ou quando Jay Smith, o “Safadinho” conhecido como Pinky, foi encontrado morto a facadas no deserto perto de Las Vegas.

É o tipo de alegria que sentimos quando Dana Platto, a garotinha de Diff’rent Strokes, foi presa, posou nua para a Playboy e tomou uma overdose de sedativos.

Essas são as manchetes que vendem jornal para as pessoas que ficam na fila do supermercado, tentando aproveitar as promoções e envelhecendo.

A maioria das pessoas quer ler sobre Lani O’Grady, a linda filha em Eight is Enough, encontrada morta com a barriga cheia de Vicodin e Prozac no trêiler onde morava.

Sem bafafá, diz o editor, não tem matéria.

O feliz Kenny Wilcox, com seus pés-de-galinhas risonhos, não é vendável.

O editor me diz: – Se você encontrar pornografia infantil no computador de Wilcox, ou uns cadáveres no porão da casa dele, teremos uma matéria. Ou melhor... descubra que ele tem tudo isso, mas ainda por cima está morto.

Na semana seguinte, minha cadela bebe uma poça de anticongelante. Ela se chama Skip em homenagem ao cachorro que Danny tinha em Danny-Next-Door. Skip, a minha filhota, é branca com grandes manchas pretas, e usa uma coleira vermelha, exatamente como na televisão.

A única cura para o anticongelante é fazer uma lavagem no estômago da cadela. Depois encher a pança dela com carvão ativado. Encontrar uma veia e instilar etanol gota a gota, lavando os rins com álcool puro. Para salvar minha cadela preciso lhe dar um porre de matar. Isso significa outra ida ao doutor Ken. Ele concorda que a semana seguinte será ótima para uma entrevista, mas já previne que sua vida não é muito excitante.

Eu falo que ele pode confiar em mim. Escrever bem significa pegar fatos comuns e dar uma aparência vibrante a tudo. Digo que ele não precisa se preocupar com a história de sua vida: essa é minha função.

Atualmente eu vivo à cata de boas matérias. Venho trabalhando como autônomo há dois anos, desde que parei de fazer matérias de entretenimento. Era um bom dinheiro que eu ganhava só à base de jabás, inventando citações para lançamento de filmes e compartilhando estrelas de cinema com gente da mídia por dez minutos, enquanto todos tentavam não bocejar.

Eram estréias de filmes, distribuições de discos, lançamento de livros: uma corrente incessante de trabalho. Uma única opinião errada, porém, e a mamata acaba. Se um estúdio cinematográfico ameaça cancelar os anúncios programados... abracadabra... desaparece sua assinatura das matérias.

Hoje estou falido, só porque uma vez tentei alertar o público sobre certo filme. Escrevi que seria melhor as pessoas gastarem seu dinheiro em outra coisa, e fui afastado do circuito. Bastou um sucesso de verão e seu poder oculto: hoje eu imploro para escrever obituários, legendas de fotografias ou qualquer outra coisa.

É roubada construir um castelo de cartas que você mesmo não consegue derrubar. Você passa anos sem acumular coisa alguma, apenas criando uma ilusão: transformando um ser humano num astro de cinema. O prêmio verdadeiro está no final do negócio, quando você pode puxar o tapete e derrubar as cartas. Mostrar o galã enfiando um pepino no cú. Revelar a namoradinha do país roubando lojas e se entupindo de analgésicos. Denunciar a deusa espancando filhos com um cabide de arame.

O editor tem razão. Ken Wilcox também. Sua vida dá uma entrevista que ninguém comprará.

Para me preparar, passo a semana toda antes da nossa conversa navegando na internet. Baixo arquivos da antiga União Soviética. Encontro tipos diferentes de astros e estrelas infantis. Estudantes russos ainda sem pelos púbicos fazem boquetes em velhos gordos. Garotas tchecas ainda à espera da primeira menstruação são enrabadas por macacos. Vou salvando todos esses arquivos num CD, fino e compacto.

À noite coloco a coleira em Skip, e arrisco uma longa caminhada pela vizinhança. Quando volto ao apartamento, trago os bolsos cheios de pequenos sacos plásticos, envelopes de papel, e quadrados de alumínio com tabletes de Percodan, OxyContin, e Vicodin. Além de frascos de vidro com crack e heroína.

Escrevo todas as catorze mil palavras da entrevista antes de Ken Wilcox abrir a boca. Antes até de nos encontrarmos.

Para mantermos as aparências, porém, levo meu gravador e um bloco de anotações. Finjo tomar notas com umas canetas velhas. Levo também uma garrafa de vinho tinto “batizada” com Vicodin e Prozac.

Na casinhola suburbana de Ken, eu esperava ver uma cristaleira repleta de troféus empoeirados, fotos reluzentes e medalhas cívicas. Um memorial à sua infância. Não há nada parecido com isso. Qualquer dinheiro que ele tenha ganho está no banco, rendendo juros. A casa tem apenas tapetes marrons e paredes pintadas, com cortinas listradas em cada janela. E um banheiro com azulejos cor-de-rosa.

Eu lhe sirvo vinho tinto e simplesmente deixo que ele fale. De vez em quando peço que faça uma pausa, e finjo que estou anotando cada palavra.

Ele tem razão. Sua vida é mais entediante do que a reprise de um filme de verão em preto e branco.

Por outro lado, a matéria que já escrevi é muito boa. Minha versão sobre a longa queda de Kenny desde o halo dos refletores até a mesa de autópsia. Revela que ele perdeu a inocência com uma ampla lista de executivos da televisão, durante sua campanha para ganhar o papel de Danny. Para manter os patrocinadores felizes, foi cultivado como um brinquedo sexual. Tomava remédios para se manter magro, para retardar a chegada da puberdade e para virar noites gravando cena após cena. Ninguém, nem seus amigos e familiares, sabia que Kenny se viciara completamente em drogas e mantivera uma necessidade perversa de chamar a atenção, mesmo depois do fim da sua carreira. Até a profissão de veterinário era apenas um meio de acesso a drogas boas e sexo com animais pequenos.

Quanto mais vinho Ken Wilcox bebe, mais ele diz que sua vida só começou quando Danny-Next-Door acabou. As oito temporadas vivendo o Danny Bright são tão reais quanto nossas memórias do segundo ano na escola parecem reais. Apenas momentos enevoados sem ligação. Cada fala de diálogo era simplesmente algo que ele aprendia naquele dia só para usar num teste. A linda casa de fazenda da pradaria era apenas uma fachada. Por trás das cortinas de renda nas janelas, só havia terra batida coalhada de guimbas de cigarro. A atriz que representava a avó de Danny cuspia sem parar quando os dois eram focalizados juntos. O cuspe esterilizava: continha mais gim do que saliva.

Bebericando vinho tinto, Ken Wilcox diz que hoje sua vida é muito mais importante. Ele cura animais e salva cães. A cada gole, sua fala vai se esgarçando em palavras isoladas cada vez mais espaçadas. Pouco antes de fechar os olhos, ele pergunta como Skip está.

Minha cadela, Skip.
Eu digo que Skip está bem, muito bem.
E Kenny Wilcoz diz: – Ótimo, fico feliz com isso...
Ele dorme, ainda sorrindo, quando eu meto a arma na sua boca.
“Feliz” não faz bem a ninguém.

A arma não está registrada sob nome algum. Com minha mão esquerda, curvo o dedo dele em torno do gatilho. O pequeno Kenny está despido no sofá, com o pau besuntado de gordura de cozinha, enquanto um vídeo de seu velho programa passa na televisão. Mas o elemento decisivo é a pornografia infantil baixada no disco rígido do computador dele. Além de fotos de crianças sendo fodidas, que foram impressas e coladas nas paredes do quarto.

Os sacos de sedativos estão escondidos embaixo da cama. A heroína e o crack, dentro do açucareiro.

Em menos de um dia, o mundo deixará de amar Kenny Wilcox e passará a ter ódio dele. O pequeno Danny-Next-Door deixará de ser um ídolo infantil e se transformará num monstro.

Na minha versão, Kenny Wilcox passou aquela última noite apontando a arma para todos os lados e lamentando que ninguém mais ligava para ele. Urrava que fora usado e depois rejeitado pelo mundo. Continuou bebendo e engolindo pírulas a noite toda, dizendo que não tinha medo de morrer. Na minha versão, ele morreu depois que eu fui para casa.

Na semana seguinte, eu vendi a matéria: a última entrevista de um astro infantil amado por milhões de pessoas em todo o mundo. Uma entrevista dada poucas horas antes que o vizinho o encontrasse morto, vítima de suicídio.

Uma semana depois, sou indicado para o prêmio Pulitzer.

Poucas semanas depois, ganho o prêmio. São apenas dois mil dólares, mas o lucro real é a longo prazo. Não passa um dia sem que eu recuse trabalho e que meu agente selecione propostas para mim. Não, eu só faço trabalhos com alta visibilidade e muito dinheiro. Matérias de capa para grandes revistas. De âmbito nacional.

Agora meu nome significa Qualidade. Minha assinatura na matéria significa A Verdade.

Meu caderno de endereços está cheio de astros de cinema, roqueiros famosos e escritores populares. Tudo que eu toco, transformo em Famoso. Troco meu apartamento por uma casa com quintal para Skip poder correr, além de jardim, piscina, quadra de tênis e televisão a cabo. Saldamos a dívida de mais de mil pratas que contraímos pelas radiografias e pelo carvão ativado.

É claro, você pode ainda ligar algum canal a cabo e ver Kenneth Wilcox assobiando e atirando bolas de beisebol. Ele era um garotinho assim, antes de se transformar num monstro com gim cuspido na cara. O pequeno Danny e seu cachorro, andando descalços pela pradaria. Seu fantasma televisionado em rede nacional mantém minha carreira viva por contraste. As pessoas adoram saber da minha verdade sobre aquele garotinho que parecia tão feliz.

“Die reinste Freude ist die Schadenfreude.”

Esta semana, minha cadela desenterra e come uma cebola.

Começo a telefonar para vários veterinários, tentando encontrar alguém que salve Skip. A essa altura dinheiro não é problema. Posso pagar qualquer coisa.

Eu e minha cadela somos muito felizes. Levamos uma vida boa. Mas enquanto estou ao telefone, ainda folheando o catálogo, Skip, minha filhota, pára de respirar.

* A frase alemã “Die reinste Freude ist die Schadenfreude” citada no texto significa em português: "A mais pura alegria é a alegria malévola" 

Nenhum comentário:

Postar um comentário